domingo, 27 de agosto de 2017

Jogos de palavras: a realidade da chamada “reforma política”

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 29/08/2017 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Circulam atualmente várias análises que apontam na mesma direção em relação ao movimento político de alteração de regras eleitorais: não se trata de uma reforma e, menos ainda, vai produzir mudanças significativas na política nacional. Entretanto, ainda que muitos tenham consciência do quão impróprio é o termo, mesmo esses acabam fazendo concessão à praticidade e empregando cotidianamente a expressão “reforma política”. Esse ato inocente de comunicação acaba por gerar consequências reais: a repetição do termo “reforma política” transmite para a sociedade a mensagem equivocada de que a política brasileira estaria prestes a passar por mudanças importantes. Isso beneficia os atuais detentores de mandato no Legislativo nacional, pois cria-se a perspectiva junto ao público de que os políticos atuais seriam capazes de solucionar os problemas da política brasileira. Esse jogo de palavras, portanto, pode ser visto como uma tentativa dos políticos tradicionais renovarem sua imagem perante o eleitorado, colocando-se como parte do futuro desejado por todos.
Difícil saber quantos parlamentares federais participam dessa articulação que busca um tipo de salvação coletiva, mas é possível ver uma rara aproximação entre a maioria das lideranças partidárias quando o tema é a chamada “reforma política”. A discordância que se nota, sobretudo na Câmara dos Deputados, envolve principalmente o grupo que não goza de tanta notoriedade, o chamado baixo clero.
Outros jogos de palavras também funcionam no mesmo sentido que o conceito geral de “reforma política”: a proposta de outros modelos de financiamento de campanha, por exemplo, suscita a ideia de que estariam sendo combatidas as relações espúrias de pagamentos de grandes empresas a partidos políticos em troca de favores desonestos. Essa lógica parte do pressuposto de que a culpa pelos malfeitos residiria nas leis, e não nos homens que as descumpriram durante anos; assim, bastaria uma nova legislação para sanar o problema da corrupção.
Ocorre que as doações eleitorais ilegais do passado significam que empresas e partidos políticos estavam dispostos a burlar a lei para cumprirem com seus objetivos: essa motivação, que coloca o sucesso acima de qualquer medida ética, não irá desaparecer com qualquer lei que o Congresso aprove. O erro dos homens se corrige com a punição e substituição desses, e não com a troca das normas que, desrespeitadas no passado, podem novamente ser burladas no futuro.
No mesmo sentido, discutir as doações empresariais feitas a partidos e políticos de forma legítima é menos importante do que aparenta. A conduta desonesta dos políticos, independentemente do fator que as motivou, é que deveria ser foco das atenções: como proceder para evitar que um deputado literalmente venda seu voto, alugue sua participação em uma CPI ou assuma na tribuna posições que nada têm a ver com os interesses de seus eleitores? Essas perguntas, voltadas para o comportamento do político eleito, deveriam ser centrais a uma “reforma política” que fosse digna desse nome.
Fica claro, portanto, que as alterações na legislação eleitoral que provocam tanto alarde no Brasil têm pouco a ver com os maiores problemas da política atual. A chamada “reforma política” não é muito mais do que alguns jogos de palavras encobrindo medidas que, ao que tudo indica, tendem a beneficiar justamente àqueles que criaram a crise na qual se encontra o país.

domingo, 20 de agosto de 2017

EUA: um país sem presidente

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 22/08/2017 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

            Mais do que provavelmente tenha desejado, Donald Trump tem estado em evidência de forma praticamente onipresente nas últimas semanas. Como era de se esperar em uma situação desse tipo, as falhas e defeitos do presidente dos EUA saltaram aos olhos do mundo. O impasse em relação às armas nucleares da Coreia do Norte, que durante mais de duas décadas não foi além do componente folclórico e inusitado da política mundial, escalou a um patamar realmente perigoso nas últimas semanas. As tradicionais ameaças megalomaníacas e paranoicas dos norte-coreanos foram confrontadas, pela primeira vez, por bravatas igualmente disparatadas: Trump ameaçou seus oponentes com “fogo e fúria nunca antes vistos”, incentivando ainda mais a perigosa arenga entre as duas potências nucleares.
Indiferente ao risco que estimulava, Trump também acenou com a possibilidade de ação militar contra a Venezuela, país à beira da guerra civil cujo governo já se encontrava sob intensa pressão popular e internacional. Evocando o fantasma favorito da esquerda hispano-americana, a intervenção ianque no continente, Trump conseguiu a façanha de produzir alguma popularidade para o governo de Nicolás Maduro, subitamente incumbido da defesa da soberania nacional venezuelana.
Concluindo a semana, Donald Trump ainda se manteve neutro em relação aos distúrbios com morte ocorridos na pequena cidade de Charlottesville, no estado da Virgínia, envolvendo grupos racistas e defensores dos direitos civis. Culpando a todos os envolvidos no caso, Trump causou escândalo ao redor do mundo por declarar, com isso, apoio tácito aos movimentos pela supremacia branca do sul dos EUA, muitos dos quais defendem plataformas oficialmente nazistas. Dois dias depois, Trump se retratou e condenou os grupos racistas, apenas para, no dia seguinte, voltar à posição inicial de condenar igualmente a todos os envolvidos.
O fato de todas essas polêmicas se relacionarem com as declarações de Trump nas redes sociais é sintomático: seu governo não tem conseguido avançar em suas propostas principais, sofrendo sucessivas derrotas no Legislativo e no Judiciário. Mesmo que o partido do governo tenha maioria tanto na Câmara quanto no Senado, muitos parlamentares republicanos têm feito oposição a algumas políticas de Trump, certamente temerosos de que essas prejudiquem diretamente a seus eleitores. Não é por acaso, portanto, que o primeiro deputado a mencionar abertamente o impeachment de Donald Trump foi um membro de seu próprio partido, eleito pela Flórida.
O grau de inação de Donald Trump em relação à administração do país é tão flagrante que vê-se com frequência analistas políticos norte-americanos se dedicando a observar a filha e o genro do presidente, ambos nomeados como assessores especiais do governo, na esperança de que desse casal possam surgir liderança e iniciativas que influenciem Trump. Afinal, o comportamento errático e improdutivo do presidente já foi percebido por muitos como uma efetiva lacuna no cargo político de maior destaque dos EUA.
Pressionado cada vez mais por suas ligações com o governo russo, é provável mesmo que Donald Trump renuncie do posto para o qual foi eleito: afinal, já declarou ter saudades de seu ritmo de vida anterior à presidência, que segundo ele, era bem menos atarefado. Sob esse cenário, Trump apenas tornaria oficial algo que já é real: os EUA não têm hoje, efetivamente, um presidente em exercício.

Eficiência na gestão pública: assunto eternamente ignorado no Brasil

Por Paulo Diniz (publicado na edição de 13/08/2017 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

A revisão da meta fiscal do orçamento federal se tornou o assunto principal a dominar a atenção da opinião pública. O corte de gastos e o equilíbrio das contas federais, por si sós, não são problemas: hoje é claro para todos que o descontrole fiscal e a ficção contábil produzidos pelo governo de Dilma Rousseff foram prejudiciais ao povo brasileiro. O que merece reparos na gestão Temer é que ainda não surgiu pensamento que fosse além da simples regulação de receitas e despesas.
Em meio a essa concepção imediatista e fiscalista, surgem propostas que merecem atenção: a instalação de programa de demissão voluntária (PDV) no governo federal, e a criação de um teto salarial de R$ 5.000,00 para servidores que ingressarem na burocracia da União. Ambas medidas seriam capazes de cortar despesas do governo federal no curto prazo, agradando a perspectiva simplista da gestão de Temer; já as consequências nefastas seriam sentidas apenas no futuro, quando o atual governo constar como um curto parágrafo nos livros de história.
O programa de demissão voluntária é uma prática comum em empresas privadas, porém sua transposição para o setor público não pode ser vista como um processo automático: o Estado tem métodos de seleção de pessoal próprios, como o concurso público, e costuma precisar da fidelidade de seu funcionário por toda a sua vida produtiva, concedendo por isso a estabilidade; dessa forma, não seria fácil ou rápido contratar novos servidores quando, após a realização de um PDV, o funcionamento dos órgãos públicos demandar funcionários adicionais. Além disso, um PDV costuma atrair os funcionários mais produtivos, que se consideram aptos a enfrentar novamente as incertezas do mercado de trabalho; já os demais, que por vários motivos não seriam capazes de encontrar um novo emprego, tendem a permanecer onde estão. Se colocado em prática na burocracia federal, um PDV faria provavelmente o Estado perder seus servidores mais eficientes, mantendo em suas fileiras os menos produtivos.
Efeito semelhante teria a imposição de um teto salarial durante os primeiros anos da carreira de um servidor público: o valor de R$ 5.000,00 não seria suficiente para remunerar o investimento que muitos profissionais hoje fazem para serem aprovados em concursos e se tornarem servidores federais; empresas privadas poderiam atrair e reter tais pessoas facilmente, a partir de ofertas salariais melhores. O emprego público deixaria, portanto, de atrair alguns profissionais altamente competentes, como ocorre hoje em algumas áreas.
A produtividade do Estado, percebe-se, não foi tema considerado pela equipe de Temer. No longo prazo, é justamente o funcionamento eficiente da máquina pública o que mais deveria interessar: obter mais e melhores serviços para a população, a partir de um mesmo montante arrecadado. Infelizmente, o pensamento simplista dos gestores da era Temer vem sendo regra na história brasileira: reduzir despesas, quase sempre mutilando a capacidade de ação do Estado, vem sendo considerado por nossos governantes como sinônimo de “reforma do Estado”.
As poucas iniciativas que contradizem essa triste tradição, levadas a cabo por Getúlio Vargas nos anos 1930 e por Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, tiveram resultados limitados e quase nunca são lembradas pelo grande público. Todo esse cenário sequer compõe a pauta de partidos políticos e de seus pré-candidatos para 2018.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

2018: uma eleição estadualista?

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 08/08/2017 de O Tempo - Belo horizonte, Minas Gerais)

Algumas semanas atrás, o senador Renan Calheiros protagonizou um insólito rompimento com Michel Temer, proferindo um discurso capaz de agradar até o mais radical dos petistas. O movimento estava relacionado com uma questão local: em Alagoas, Calheiros quer preservar a aliança entre PMDB e PT para facilitar a reeleição de seu filho, que hoje comanda o estado. Mais vale garantir um governador aliado do que sacrificar sua popularidade apoiando o presidente mais detestado das últimas três décadas. Em Minas Gerais a situação é semelhante: PMDB ainda apoia o governo estadual petista, mantendo uma aliança que será indispensável para que Fernando Pimentel possa cogitar a disputa pela reeleição de maneira competitiva. Pouco representativo no governo federal, o PMDB mineiro tem mais motivos para se concentrar no caminho que escolher para o pleito estadual do que para empregar suas forças na disputa pela Presidência da República.
Partindo desses casos mais evidentes, é possível discutir a hipótese de que as eleições de 2018 podem transcorrer predominantemente guiadas por uma miríade de forças estaduais, e muito menos pelas grandes dinâmicas da política nacional brasileira. Essa possibilidade representa uma inversão da forma como aconteceram os últimos pleitos nacionais, nos quais a disputa pelo comando do país exerceu uma influência decisiva sobre as eleições para os cargos de governadores e senadores, principalmente.
Podemos considerar, como base dessa estrutura, a situação atual do governo Temer: unanimemente impopular, colhendo resultados econômicos tímidos e lentos, dotado de orçamento deficitário e agindo há meses para garantir a própria sobrevivência; é seguro afirmar que existe hoje um vazio de poder político em Brasília. É evidente o contraste com as campanhas de 2002 e 2010, por exemplo, nas quais havia lideranças claras na Presidência, em torno das quais se aglutinavam grupos favoráveis e contrários. Tais centros de poder, ainda mais fortes quando há reeleição em jogo, dominam a atenção da opinião pública e dos meios de comunicação, o que obriga candidatos a governador a adotarem um posicionamento nítido diante do eleitorado.
A ausência de força política no Governo Federal, sob uma perspectiva histórica, tem paralelo na redemocratização da década de 1980: as primeiras eleições diretas para governadores se deram em 1982, levando ao poder nos estados lideranças populares como Leonel Brizola e Tancredo Neves. Enquanto isso, permaneceria na Presidência até 1985 o desgastado general Figueiredo, remanescente do regime militar. O restante dessa década pode ser lido, na política brasileira, como uma sequência de articulações feitas por governadores fortes, em detrimento de presidentes fracos: da campanha fracassada pelo voto direto, passando pela eleição de Tancredo para a Presidência pelo Congresso e culminando com a surpreendente eleição direta de Fernando Collor em 1989 – esse, por sua vez, ex-governador de Alagoas.
Sendo quase impossível que Temer passe a ter relevância eleitoral, o mais provável é que tenhamos um perfil estadualista nas eleições de 2018: candidatos à Presidência atuando diante de um vazio na esfera federal, buscando apoio junto a mais de 30 partidos no caleidoscópio das 27 disputas estaduais. O que se pode esperar, portanto, é um grau maior de imprevisibilidade, derivado da oferta em excesso de possibilidades de coligações regionais.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Emendas parlamentares: de inimigas da representação popular a esteio do governo Temer

por Paulo Diniz
publicado na edição de 01/08/2017 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Com duas frases curtas, o veterano deputado federal Paes Landim resumiu recentemente o segredo da sobrevivência política de Michel Temer. Falando por si, Landim disse valorizar Temer pela proximidade e diálogo que mantem com o Legislativo; nas votações polêmicas e impopulares, o deputado confia na “memória curta” da população, que tende a esquecer de tudo dentro de um ano. Apesar desse tipo de raciocínio ser perceptível no comportamento dos políticos brasileiros em geral, dificilmente surge alguém que o expresse tão desavergonhadamente quanto esse deputado, eleito pelo PTB do Piauí e que exerce hoje seu oitavo mandato.
A fala de Paes Landim nos ajuda a compreender não só a surpreendente manutenção de Temer no poder, como também alguns mecanismos da política brasileira. Quando cita “proximidade e diálogo”, Paes Landim se refere muito provavelmente à disposição de Michel Temer para receber pessoalmente os pedidos dos parlamentares e atendê-los. A nomeação de pessoas indicadas por deputados e senadores para ocuparem cargos na administração pública federal é um bom exemplo: não apenas Temer dá emprego para quem seus aliados pedem, como também exonera com rapidez tais pessoas quando percebe que o apoio político prometido começa a vacilar.
Mas a felicidade de deputados como Paes Landim se deve muito mais ao manejo que Temer faz dos recursos orçamentários: as chamadas “emendas parlamentares”, desconhecidas da maioria da população, desempenham o papel mais importante na relação do presidente com o Legislativo. Em linhas gerais, cada emenda feita por um parlamentar ao projeto da lei orçamentária significa que esse político define a forma como será gasta parte dos recursos do Estado brasileiro; historicamente, deputados e senadores usam o instituto das emendas para levar recursos, na forma de obras e serviços, para as regiões nas quais tiveram melhor votação.
Não há, portanto, ilegalidade nessa prática, apenas uma questionável dinâmica de recompensa à população que se mantém fiel a seu parlamentar, do ponto de vista eleitoral. O problema que ocorre no Brasil é que a tarefa do parlamentar acaba se restringindo, na maioria dos casos, ao gerenciamento de suas próprias emendas; a representação dos interesses e a defesa dos valores de seu eleitorado específico costuma ser deixada de lado. A dinâmica das emendas parlamentares, assim, permite que os deputados não representem ninguém, pois o único compromisso assumido foi o de carrear alguns recursos para certa região: cumprida essa promessa, podem se comportar como quiserem no plenário.
Tendo presidido a Câmara dos Deputados duas vezes, Michel Temer sabe o quão importantes são as emendas na carreira de um parlamentar: apenas em junho, liberou o pagamento de cerca de R$ 2 bilhões em emendas, valor semelhante à soma dos demais meses de 2017. Na votação da admissibilidade da denúncia feita pelo Ministério Público Federal contra Temer, esse espera obter a gratidão dos deputados por sua grande generosidade.
Levando em conta a atual composição do Legislativo federal, é bem provável que os cálculos de Temer se mostrem corretos, e seu governo ganhe assim mais alguns meses de sobrevida. Porém, nada impede que a crença de Paes Landim na “memória curta” do eleitor brasileiro tenha caducado como conhecimento político, e as urnas em 2018 anunciem uma grande renovação nos quadros do Legislativo nacional; só depende de nós.