domingo, 11 de dezembro de 2016

Aprendizes de feiticeiro

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 11/12/2016 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Clássico da animação, Fantasia foi uma das obras que mais ajudou a consolidar os estúdios de Walt Disney. Lançado em 1940, o filme gira em torno de um Mickey que se cansa de suas árduas tarefas como auxiliar de um mago, e decide assumir as funções de seu patrão quando esse está ausente. Incapaz de lidar com os poderes que evoca, Mickey causa um caos tremendo, que só é contido quando o mago retorna. Mesmo sendo uma analogia infantil, é impossível não tê-la em mente diante dos acontecimentos recentes relacionados com as medidas anticorrupção que tramitam no Congresso.
Elaborado pelo Ministério Público Federal entre 2014 e 2015, o conjunto de dez medidas contra a corrupção chegou à Câmara dos Deputados em março de 2016, na forma de um projeto de iniciativa popular subscrito por mais de dois milhões de brasileiros. Esse tipo de apoio popular foi obtido a partir de ampla mobilização da sociedade civil, assim como por intensa atividade nas redes sociais. Mais do que isso, a iniciativa do MPF veio de encontro a uma demanda social urgente: a erradicação da corrupção do meio político. Como explicar, portanto, o tratamento dado pelos deputados a tal projeto de lei?
O interesse corporativo é o primeiro elemento: os deputados, muitos com pendências legais, agiram em defesa própria ao descaracterizar a proposta original do MPF, transformando-a em um instrumento de coação do Judiciário e do próprio Ministério Público. Porém, tal ação corporativa dos parlamentares não explica tudo, pois a pressão política que acompanha projetos de lei de iniciativa popular costuma intimidar bastante os detentores de mandato eletivo, sempre preocupados em serem reeleitos.
A explicação para o ocorrido com o projeto de lei de combate à corrupção reside mais no próprio MPF do que na Câmara. Assim como no filme de Disney, o MPF evocou forças políticas poderosas, sem que tivesse o conhecimento ou o cuidado necessários para conduzir um processo político dessa envergadura.
O momento político vivido pelo Brasil é marcado por tensão, instabilidade e extremo desgaste emocional por parte dos parlamentares. Esse contexto é desaconselhável para se propor mudanças na estrutura do relacionamento entre os poderes Legislativo e Judiciário, especialmente quando as tensões tendem a subir ainda mais com a revelação dos mais de 200 nomes dos beneficiados pela empreiteira Odebrecht.
Quando o MPF propõe que sejam mudadas as regras do jogo, enquanto esse ainda está em andamento, não só revela ausência de senso de oportunidade, como também uma incrível falta de noção de estratégia. Tendo seus oponentes acuados no campo jurídico, o MPF transferiu a iniciativa para o âmbito da política, criando uma formidável chance de revide para os deputados.
A soma de toda essa insensatez, agora, está nas mãos do Senado, cujo presidente acaba de se tornar réu por corrupção. A sociedade se mobiliza novamente, agora para tentar reverter o retrocesso aprovado pela Câmara. Infelizmente, não virá um mago para recolocar tudo em ordem.

domingo, 4 de dezembro de 2016

A PEC 55 e seus filhotes: uma questão federativa

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 04/12/2016 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

A reunião entre 23 governadores e Michel Temer, realizada recentemente em Brasília, resultou na celebração de um acordo preliminar de ajuda aos estados, que vivem situação fiscal desesperadora. Esse evento, entretanto, traz poucos motivos para alívio: por mais que sejam transferidos recursos para o pagamento dos servidores públicos estaduais, uma análise federativa indica que os vícios mais antigos da federação brasileira permanecem intactos.
Sendo um país de proporções continentais e farto em diversidades, o Brasil se encaixa como um caso típico no qual os mecanismos federativos muito têm a contribuir: combina a autonomia dos governos estaduais para tomar decisões adequadas às suas respectivas realidades, com a força de um governo nacional. Ocorre que, historicamente, equilibrar todas essas partes em um mesmo acordo tem sido difícil.
Pesquisadores apontam o federalismo mais como uma prática de negociação constante do que como uma fórmula institucional específica. No caso brasileiro, entretanto, temos negociações realizadas de forma bastante desigual: cabe à União mais da metade do total arrecadado no país, já descontadas as transferências obrigatórias a estados e municípios. Trata-se de um enorme volume de recursos, disponível para as ações do governo federal. Já os 5.570 prefeitos e 27 governadores dividem entre si a outra metade da riqueza arrecadada por impostos, dispersando os recursos entre tantos governos que pouco sobra para o atendimento das necessidades próprias de cada região.
Não custa lembrar que, pela Constituição de 1988, cabem aos estados a prestação das políticas públicas que mais demandam mão de obra, como a segurança pública e boa parte da educação básica. Assim, a tradicional acusação de que os estados empregam servidores em demasia, mesmo que faça sentido, parte de uma estrutura desfavorável aos governadores.
A União, portanto, reafirma seu poder em momentos como o atual: oferece auxílio fiscal, devidamente condicionado à obediência das diretrizes federais de corte de gastos, quando os estados atingem suas recorrentes bancarrotas. Assim, governadores petistas que perfilaram com Dilma Rousseff durante o processo de impeachment, como o aguerrido piauiense Wellington Dias e o sutil Fernando Pimentel, agora aderem às condições oferecidas por Temer para obter um naco das receitas federais. Comprometem-se, portanto, a reproduzir em seus estados a mesma lógica do teto fixo nos gastos públicos que, proposta por Temer para o governo federal, motivou entre outros protestos a ocupação de milhares de escolas em todo o país.
A configuração do cenário político nacional, portanto, tende a melhorar para Temer de agora em diante, já que a maioria dos governadores vai dividir com o presidente a impopularidade pelos cortes e congelamento de gastos. Temer esvazia a principal crítica da oposição, pois essa passa em larga medida a reproduzir as mesmas propostas impopulares do presidente: a PEC 55 se reproduz antes de completar sua tramitação no Senado.