domingo, 30 de agosto de 2015

República dos pijamas

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 29/08/2015 do Jornal de Uberaba - Uberaba, Minas Gerais - e de 30/08/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Muito pode ser aprendido a respeito da política de um país a partir da forma como se comportam suas principais lideranças após o fim de seus mandatos. Em regimes presidencialistas, como o vigente no Brasil e nos Estados Unidos, essa questão chama a atenção devido à concentração de poder e à intensa cobertura de imprensa que se associam à figura do presidente da República. Regimes parlamentaristas, nos quais quem ocupa o Executivo é o líder da maior bancada parlamentar, costumam ser marcados por uma fluidez maior nas relações de poder, de forma que um mesmo político pode ocupar o posto de primeiro-ministro em várias ocasiões e por períodos distintos de tempo.
O folclore político brasileiro é rico em expressões que descrevem os mandatários após o cumprimento de seus mandatos: todas os igualam a algo inútil e sem valor. O exercício do poder Executivo é percebido pelo senso comum brasileiro como a única medida possível para o mérito de um homem público, um raciocínio que explica o escasso reconhecimento do mérito de grandes parlamentares como Ulysses Guimarães, um dos responsáveis diretos pelo reestabelecimento da democracia no Brasil.
Curioso perceber que muitos dos ex-presidentes brasileiros permaneceram envolvidos com disputas eleitorais após deixarem o cargo maior da nação. Foram eleitos senadores desde Arthur Bernardes, que protagonizou um dos governos mais polêmicos da história, passando pelos icônicos Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, até os três primeiros presidentes da atual democracia: Sarney, Collor e Itamar. Fernando Henrique Cardoso e Lula, por sua vez, já recusaram pedidos para que voltassem às urnas, seja para disputas senatoriais ou mesmo presidenciais. Lideranças em seus partidos, FHC e Lula buscam de formas distintas redefinir o papel do ex-presidente: o tucano acreditou, durante certo tempo, ser adequada a função de conselheiro, na qual sua experiência poderia ser empregada opinando sobre os maiores problemas do país; com esse objetivo, FHC chegou a compor um grupo internacional, juntamente com o sul-africano Nelson Mandela e o norte-americano Bill Clinton.
Já Lula, que desprezava seu antecessor ao afirmar que esse deveria “vestir o pijama” e deixar de opinar sobre seu governo, optou por um caminho eminentemente privatista em sua carreira pós-presidência: associou-se a grandes empreiteiras e passou a auxiliá-las, com seu prestígio pessoal, em negócios ao redor do mundo. Atuando recentemente no combate ao incêndio que ameaça o mandato de Dilma Rousseff, Lula tem voltado a se envolver com o cotidiano da política.
Atualmente, nos EUA, dois ex-presidentes têm se envolvido ativamente com a política partidária: Bill Clinton apoia a candidatura de sua esposa nas eleições de 2016, enquanto George W Bush articula a indicação de seu irmão para o mesmo pleito. Interessa a ambos impedir a entrada de novos competidores na disputa: por isso, têm participado em eventos conjuntos. Resta saber, no Brasil, como andam tais articulações de longo prazo.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Frágil equilíbrio

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 23/08/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

As manifestações realizadas em 16 de agosto foram cheias de significado para as diversas correntes políticas atuais. Para a classe média, que pela terceira vez deixou as panelas para ir às ruas, está ficando claro que não basta expressar sua indignação aos quatro ventos: para concretizar a mudança que desejam, é preciso uma tática concreta, assim como atores do sistema político dispostos a assumir tal empreitada. Por isso, foi possível perceber a predominância dos pedidos de impeachment de Dilma Rousseff, assim como uma aproximação discreta em relação a lideranças do PSDB.
A queda no número de manifestantes também é significativa: mostra a percepção de que a simples presença nas ruas, mesmo que reúna milhões, não é capaz de alterar os rumos do governo, ou mesmo de suscitar a autocrítica nas cúpulas palacianas. O governo se acostumou a conviver com altos índices de rejeição popular, fazendo uso de um raciocínio que combina recortes pontuais da realidade com altas proporções de uma fantasia persecutória que vitimiza o PT; um enredo que curiosamente coloca como fraco o partido que exerce o poder há mais de uma década, controlando os bilhões do orçamento da União com singular desenvoltura. No mesmo sentido, reputar o descontentamento popular unicamente à crise econômica significa simplificar de forma conveniente o contexto político: afinal, protestos contra o governo vêm ocorrendo desde 2013, e mesmo nas eleições de 2014, as urnas mostraram o país claramente dividido. O desgaste petista vem se acumulando ao longo dos anos, e a negação desse fato não torna o partido mais apto a superar tais desafios.
Derrotado no campo da popularidade, o governo também enfrenta dificuldades no âmbito jurídico: a operação Lava Jato produz suas primeiras condenações, enquanto investigadores continuam encontrando novas ramificações na teia de agentes governistas que desviam recursos de contratos públicos. O cerco ao governo também se aperta devido ao julgamento das contas federais de 2014, algo que envolve diretamente Dilma Rousseff, sobretudo por seu conhecido zelo pela questão orçamentária. Acumulam-se, assim, ameaças reais em mais um flanco do governo.
No campo da política, foi rompido o isolamento quase total que afligia a Dilma Rousseff: uma trégua foi feita com o presidente do Senado, Renan Calheiros, o que dividiu temporariamente as forças do PMDB e enfraqueceu o movimento pró-impeachment que se alastrava pelo Legislativo. Essa ponte construída entre governo e PMDB é indispensável para que Dilma se sustente no poder, pois é capaz de evitar que a queda de sua popularidade, por si só, dê origem a um processo de impeachment.
A concomitância permanente entre as crises de popularidade, jurídica e de sustentação política do governo, que até se configurou por breves momentos no mês de agosto corrente, significaria um cenário fatal para o mandato de Dilma. É graças a um fragilíssimo equilíbrio, portanto, que foi adiada a formação da tempestade completa nos céus sobre Brasília.

domingo, 16 de agosto de 2015

Humildade ainda que tardia

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 16/08/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

A divulgação de pesquisa de popularidade do Governo Federal, feita pelo mesmo instituto que primeiro previu a vitória de Dilma Rousseff em 2014, deu contornos matemáticos a uma realidade que quase todos percebem: o isolamento da presidente. Os números estabelecem novos recordes, superando os piores momentos de José Sarney e Fernando Collor, nos anos 80 e 90. Não por acaso, em ambas situações o Brasil vivenciava descontrole na economia, com taxas inflacionárias altas e muita incerteza da população sobre o futuro. Collor, sem apoio legislativo e envolvido em escândalo de corrupção, teve seu mandato abreviado por pressões populares e políticas. Já o habilidoso Sarney soube manter sua coalizão parlamentar unida, sustentando seu governo até o último dia, apesar do enorme desgaste político que o acompanha até hoje.
Essa simples comparação deveria servir como orientação para o comando do atual governo; afinal, trata-se das únicas referências existentes, na democracia vigente, de gestões que atingiram graus de rejeição popular que beiravam a unanimidade. Porém, o conjunto das atitudes da cúpula do governo Dilma não indica que lições desse tipo foram aprendidas. O ministro da Casa Civil, Aloísio Mercadante, parece integrar o time de petistas que se conscientizaram a respeito da situação atual do governo e, também, em relação à forma como funciona a política no Brasil. Recentemente, o ministro elogiou a forma “elegante” como o PSDB vinha fazendo oposição nos últimos 12 anos, aproveitando a ocasião para reconhecer o enorme ganho social representado pela estabilização da economia brasileira, fruto de governos tucanos. Contradizendo toda a propaganda petista das últimas décadas, Mercadante se reconcilia com a razão: PT e PSDB podem ser adversários, mas nunca antagonistas, uma vez que, cada um a seu modo, ambos partidos levaram a cabo projetos de sucesso para o avanço do Brasil.
O ex-presidente Lula, apesar de ter agido às escondidas, também seguiu o raciocínio de Mercadante: lançou sinais de que gostaria de se reunir com Fernando Henrique Cardoso, para conversar sobre a estabilidade do país. Escaldado após ser atacado por décadas, FHC recusou a proposta petista; ficou claro que foram queimadas algumas pontes ao longo da trajetória de Lula, o que dificulta recuperar relações que, no passado, haviam sido amistosas.
Contrastando com essas duas sinalizações de aproximação em relação aos tucanos, a recente propaganda partidária do PT insistiu na estratégia do isolamento, chegando a mostrar imagens de líderes do PSDB e imputar-lhes desejos golpistas. Contradizendo a maioria dos analistas econômicos, o programa petista também afirmou que a atual crise econômica será rápida, o que só serve para granjear ainda mais antipatia junto à população dentro do médio prazo.

Somando-se tais fatos soltos, não é possível obter nada concreto: percebe-se a ausência de uma estratégia geral consistente no PT para recuperar o governo Dilma, que segue a correnteza da política de forma inerte.

O gatilho da pobreza

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 09/08/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Os dois atentados contra turistas na Tunísia, que esse ano totalizaram 59 vítimas fatais, chamam a atenção da imprensa mundial não apenas por seu custo humano, mas pelo histórico recente desse país norte-africano. O primeiro ato da “Primavera Árabe” surgiu na Tunísia, em dezembro de 2010, como movimento popular e secular contrário às péssimas condições de vida enfrentadas pela população; passados quatro anos e profundas reformas políticas, agora é o radicalismo religioso que colhe adeptos em larga escala no país, já que a pobreza e a insatisfação ainda predominam. A relação entre pobreza e política, entretanto, pode ser vista a partir de uma perspectiva mais ampla.
Em 1958, o presidente brasileiro Juscelino Kubitschek apresentou aos demais governantes do continente uma proposta batizada “Operação Pan-americana”, consistindo basicamente em um grande projeto de cooperação regional que esperava financiamento dos Estados Unidos. O objetivo era, diretamente, reduzir os alarmantes níveis de pobreza e desigualdade encontrados na região e, como conseqüência, deixar as populações carentes das Américas menos suscetíveis ao apelo de movimentos políticos de esquerda radical. Afinal, vivia-se o auge da Guerra Fria. Recebida pelos ianques com desconfiança, a OPA progrediu pouco, mas serviu de inspiração para um programa semelhante, lançado pelos EUA em 1961.
A abordagem proposta por Kubitschek em 1958 permanece válida no mundo de hoje, tendo mudado apenas o tipo de radicalismo político para o qual se voltam as populações mais carentes. Se no passado a atração era pelo extremismo de orientação marxista, hoje é o radicalismo muçulmano que serve de saída aos milhões de atingidos pela pobreza crônica, gerando ameaças à segurança das principais potências ocidentais. Diferente da década de 1960, entretanto, atualmente não é possível identificar nenhum movimento de escala multinacional voltado para o combate à pobreza, apenas iniciativas de cunho militar para conter as suas conseqüências políticas.
Além do Oriente Médio, em evidência pela guerra na Síria, também o continente africano, o centro e o sudeste da Ásia se encontram afetados por rebeliões de aspecto religioso. Invariavelmente, são as regiões mais carentes que registram quadros de radicalização religiosa e, ato contínuo, canalização dessa para a política: desde o árido Afeganistão, até a estagnada Faixa de Gaza, além da Somália, país mais pobre do mundo onde até o Estado deixou de existir em 1991.
Simples que pareça o problema, não há iniciativas de porte para soluciona-lo. Com esforço próprio, o Brasil superou a extrema pobreza ao longo das duas últimas décadas, porém aumentou o nível de desigualdade social: talvez por isso, a insatisfação social por aqui ainda se expresse por meio de fenômenos de menor intensidade, como o crime organizado. Casos de pobreza estrutural, entretanto, dependem de esforço de âmbito mundial para serem equacionados: um assunto que não consta das agendas das nações mais ricas do mundo.

domingo, 2 de agosto de 2015

Eduardo Cunha: o involuntário aliado de Dilma

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 02/08/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

A crônica política brasileira, que vem registrando surpresas a uma velocidade incrível, foi surpreendida pelas declarações recentes de Eduardo Cunha: não apenas se assumiu como oposição, como também autorizou a abertura de duas CPIs que desagradam ao Governo Federal. A associação entre as duas declarações foi inevitável, indicando que o presidente da Câmara dos Deputados vai fazer uso de sua posição institucional para enfrentar Dilma Rousseff, mesmo que o próprio Cunha tenha negado protocolarmente essa nova atuação. Dois aspectos chamam a atenção nesse posicionamento de Eduardo Cunha, sendo que em ambos há pontos de contato com o PT.
O primeiro indica o quão benéfica a nova atuação de Cunha pode ser para Dilma: tomando a frente do amplo grupo de adversários da atual presidente, Eduardo Cunha acaba por encarnar o personagem do “inimigo golpista”, central para a estratégia de defesa petista. Desde o início da crise da Petrobrás, um dos fatores que mais prejudicou a reação do governo foi a leitura equivocada da conjuntura política: os petistas acreditavam ser vítimas de um plano, patrocinado pelas “forças reacionárias”, dedicado a afastar o PT do poder. A fé nesse enredo conspiratório fez com que as lideranças petistas não se dessem conta dos próprios erros, responsáveis pelo desgaste do governo em relação à quase unanimidade da população. Desligado da sociedade, o governo de Dilma vinha investindo em estratégias equivocadas para recuperar a popularidade.
Porém, quando Eduardo Cunha passa a investir furiosamente contra a presidente, assume o papel do conspirador reacionário, emprestando veracidade do delírio persecutório dos petistas. A simplicidade do duelo entre os bons e os maus, que orienta o raciocínio petista na atual crise, ganhou sentido e legitimidade. Essa situação foi percebida com rapidez pela direção do PMDB, que se apressou a rotular a atitude de Cunha como pessoal e contrária ao posicionamento oficial do partido. Mesmo assim, o dano político já estava feito: as articulações do partido para a retirada de Dilma do poder foram explicitadas.

O outro ponto interessante no episódio em questão se refere à motivação de Eduardo Cunha para investir de forma agressiva, explícita e até imprudente contra o governo de Dilma: a crença de que as investigações da Polícia Federal, que ligam seu nome ao escândalo da Petrobrás, tivessem origem política e autoria governista. Trata-se, afinal, da mesma paranóia conspiratória nutrida pelo petismo governante, só que atribuída ao próprio Eduardo Cunha e a setores da oposição formal. Dessa forma, temos uma surreal inversão de valores: ambas as partes preferem imaginar e reagir a complicados enredos de articulações políticas urdidas contra si, do que encarar a realidade segundo a qual Poder Judiciário e Polícia Federal têm feito um incomum trabalho para combater os corruptos do Brasil. Continuando essa tendência de negação da realidade, muitas serão as vítimas dessa luta política desesperada, e não haverá vencedores.

Uma guerra fria apenas retórica

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 26/07/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

A participação de Dilma Rousseff na reunião do grupo de países tidos como potências emergentes chamou a atenção para a atuação da Rússia no mundo de hoje. Envolvida em uma guerra não-assumida com a Ucrânia, país do qual já havia anexado parte do território no ano passado, a Rússia tem adotado retórica hostil em relação aos EUA à União Europeia. Devido a esse quadro, muitos têm imaginado a volta da Guerra Fria.
A Rússia continua a ser uma potência militar formidável, única capaz de fazer frente à máquina de guerra norte-americana. Não por acaso, o general Joseph Dunford, ao ser sabatinado recentemente pelo Senado dos EUA no processo de admissão ao comando das forças armadas, apontou a Rússia como uma ameaça existencial aos Estados Unidos. Antes da ação militar, entretanto, há o cálculo político, que frequentemente inclui o interesse econômico; é sob essa lógica que a Rússia deixa de parecer tão ameaçadora. Como parte do sistema econômico capitalista, a Rússia está integrada de forma definitiva ao resto do mundo.
Entre 1947 e 1989, período de tensão entre EUA e União Soviética batizado como Guerra Fria, havia uma diferença estrutural em relação ao momento atual: a adoção do socialismo real pelos soviéticos. Além da diferença entre regimes políticos, a economia era determinante: a existência de um conjunto de países que organizava suas economias a partir do socialismo dividia o mundo em duas metades, com pouca relação entre si. Não havendo propriedade privada dos meios de produção, o Estado ocupava o lugar do empresário, agindo como gerente onipresente preocupado em organizar cada engrenagem do sistema produtivo. A economia socialista, portanto, seguia suas próprias regras, englobando dezenas de países em um sistema de comércio independente da outra metade do planeta. Nesse sentido, o esfacelamento da União Soviética significou a falência do modo socialista de organizar a produção: esse sistema não pôde igualar o dinamismo e a capacidade sempre crescente do capitalismo para gerar riqueza.

Ao adotar o capitalismo, em 1991, a Rússia se encontrava falida em todos os sentidos, passando por uma traumática década de crise e adaptação ao novo sistema. A ascensão ao poder de Vladimir Putin, enérgico e centralizador como vários outros na história russa, assim como a alta nos preços do petróleo que o país passou a explorar, deram início a uma época de prosperidade. Portanto, o ressurgimento da Rússia como potência mundial depende da manutenção de resultados positivos em sua economia, que ultimamente vem sofrendo sanções por parte dos EUA e da União Europeia devido à intervenção russa na Ucrânia. Mais do que isso, a queda recente nos preços internacionais do petróleo também tem causado efeitos negativos na economia russa, algo que causa desconfiança nos mercados financeiros mundiais. Assim, se não conseguir reverter sua retórica militarista em resultados econômicos positivos em breve, Putin provavelmente deve devolvê-la à prateleira de relíquias da era soviética.