por Paulo Diniz
(publicado na edição de 27/09/2014 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)
A
epidemia do vírus Ebola que assola alguns países do oeste da África tem
produzido manchetes que aumentam a coleção das tragédias humanas que emergem
desse continente: recentemente, soldados da Libéria atiraram contra civis indefesos
de um bairro da capital, Monróvia, que tentavam escapar da quarentena sanitária
decretada sobre parte da cidade. Cenas que superam a criatividade mórbida dos
filmes norte-americanos sobre o fim do mundo. Mais incrível, entretanto, é a
profusão de avaliações equivocadas que são emitidas publicamente sobre o mais
castigado dos continentes; para compreender melhor a África, é preciso um olhar
político e institucional bastante apurado.
O
fim da Idade Média foi marcado, na Europa ocidental, pelo surgimento do modelo tradicional
de Estado nacional, no qual um único governo controla todo o território do
país, centralizando o domínio sobre o patrimônio público, a gestão da máquina
estatal e a fidelidade política da população. A África, por sua vez, passou por
um processo bastante distinto: a partir do final do século XIX teve início a dominação
colonial, que fracionou praticamente todo o continente entre as potências
mundiais do momento. Até a década de 1960, quando a maioria dos países europeus
se retirou formalmente da África, não havia espaço para a expressão política de
seus habitantes, de forma que o modelo de Estado ocidental era quase inédito
para os novos países.
Soma-se
a esse contexto político a questão identitária, já que as fronteiras definidas
pelo colonialismo europeu pouco tinham a ver com os limites históricos
existentes entre os diversos povos africanos. Laços de grande força, como
língua, religião e origens culturais até hoje unem populações de distintos
países, tirando um pouco do significado das unidades políticas nacionais
formalmente constituídas. Unificar, sob um mesmo sentimento de identidade, populações
de origens e características diversas foi um desafio que os europeus demoraram
séculos para equacionar, desenvolvendo lentamente mitos e símbolos nacionais
que ganharam a simpatia popular. Nesse sentido, esperar que os africanos não
sejam capazes de fazer o mesmo significa subestimar-lhes em sua própria
condição humana.
O
dilema africano atual tem bases políticas e sociológicas, muito mais do que as
alegadas razões étnicas e tribais, tão comuns nas análises que povoam os principais
meios de comunicação. Entretanto, o momento no qual as jovens nações africanas
principiaram a estruturar seus Estados nacionais foi exatamente quando esse
modelo de organização política começou um longo processo de crise em todo mundo.
Assim, uma dupla tarefa se colocou aos países que conseguiram suas
independências nos anos 1960 na África: consolidar suas estruturas políticas e
burocráticas a partir de referencias que lhes eram ainda inovadores e, ao mesmo
tempo, enfrentar os mesmos dilemas que vitimam os centenários Estados nacionais
europeus, como desequilíbrio fiscal estrutural e o atendimento de demandas
sociais crescentes.