domingo, 27 de setembro de 2015

Ajuste fiscal: uma questão de compromisso

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 27/09/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

A perda do grau de investimento pelo Brasil, na opinião da agência de classificação de risco Standard & Poor’s, foi decisivamente influenciada pelo cenário político nacional. Na análise dos norte-americanos da S & P, o Congresso Nacional tem relutado em aprovar os ajustes propostos pelo governo, às vezes até elevando o nível de despesas públicas. O desacerto entre Dilma Rousseff e o PMDB, assim como a deserção formal e informal da maior parte dos partidos da base governista, se tornaram obstáculos significativos para a execução da política econômica escolhida pelo governo: o anúncio de um novo imposto foi respondido pelo presidente da Câmara dos Deputados com um lembrete de que o governo não conta com o apoio suficiente para aprovar medidas impopulares. De fato, defender maior taxação sobre os cidadãos, em época de recessão, implica em um grande risco de não ser reeleito para os deputados, que dependem de votos para se manter em atividade.
Esperar que um grande número de parlamentares arrisque suas carreiras em nome da fidelidade governista não é um dilema recente. Tratando do período que vai do final da década de 1950 ao final dos anos 1960, a socióloga Lourdes Sola fez uma importante análise a respeito do descompasso entre os poderes Executivo e Legislativo, responsável em grande medida pela crise econômica que afetou o Brasil nesse período. Desde meados do governo de Juscelino Kubitschek, a aceleração do endividamento público e da inflação demandavam do governo federal medidas que, se não eram impopulares, com certeza esfriariam a euforia da população pelo rápido desenvolvimento nacional. Os governos seguintes, de Jânio Quadros e João Goulart, também se viram pressionados pelo mesmo dilema, porém sem contar com os altos índices de popularidade que ajudavam a sustentar JK. Lourdes Sola mostra que, sempre que instada a decidir entre a estabilização da economia e a defesa da própria carreira, a classe política nacional optou pela segunda, abandonando sucessivos pacotes de medidas para controle da inflação e do gasto público. Merece destaque o Legislativo, instância na qual a responsabilidade pelos erros é diluída entre centenas de tomadores de decisão. Dessa forma, há menos constrangimento em buscar os próprios interesses, desde que todos mais estejam fazendo o mesmo. As medidas impopulares de estabilização econômica só foram de fato executadas após o golpe militar de 1964, quando o Congresso já havia sido profundamente cerceado pelos expurgos e ameaças do novo regime.
De volta a 2015, em plena vigência da democracia representativa, todo o dinamismo da política parlamentar conspira contra Dilma Rousseff e Joaquim Levy. A declaração de Eduardo Cunha, de que o novo imposto não será aprovado, faz mais sentido como uma simples constatação, do que como a ameaça de um opositor que muitos acreditaram escutar. Os avaliadores norte-americanos, que em 2008 falharam ao prever a crise do sistema financeiro dos EUA, nesse ponto têm mesmo motivos concretos para temer.

Uma incrível confusão na Síria

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 20/09/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

O drama dos refugiados sírios, que buscam chegar aos países mais ricos da Europa, tem atraído a atenção de todo o mundo. Entretanto, mesmo as dimensões dessa tragédia humanitária não são capazes de refletir a gravidade da situação que aflige hoje a Síria. É tamanho o número de forças e interesses envolvidos nesse país, que se torna muito difícil prever quando ou como os enfrentamentos podem ter fim.
Começando pelo fato mais recente: o engajamento militar da Turquia, compondo a força aérea multinacional, liderada pelos Estados Unidos, e também enviando tropas terrestres para ações pontuais. Além de colaborar no combate aos extremistas do Estado Islâmico, os turcos trouxeram ao campo de batalha sírio mais um complicador político do que uma ajuda militar: realizam também ataques às forças curdas, principais antagonistas do EI, mas que já mantinham um enfrentamento armado em relação à Turquia há alguns anos, pois lutam pelo estabelecimento do Curdistão independente, cujo território incluiria algumas províncias turcas. Essa relação traz ainda outro agravante: nas últimas eleições gerais, em junho passado, poderoso presidente turco Recep Erdogan sofreu uma considerável derrota nas urnas, principalmente devido à expansão nacional de um partido de origem curda, que o impediu de construir a maioria parlamentar que desejava. Sendo a Turquia um regime parlamentarista, a ausência de maioria parlamentar, ou de uma coalizão que cumpra esse papel, demanda a realização de um novo pleito, previsto para novembro. Nesse ambiente tenso, o presidente turco busca atacar os curdos da Síria como forma de influenciar o cenário eleitoral de seu país, pintando tal povo como inimigo da nação e, assim, afastando votos do novo partido que centraliza a oposição a seu regime.
Não bastasse abrigar rivalidades eleitorais, o conflito sírio também envolve a crescente oposição entre Estados Unidos e Rússia, no melhor estilo da antiga Guerra Fria. Os norte-americanos fornecem material militar, treinamento e apoio aéreo efetivo a grupos moderados voltados a derrubar o governo de Bashar al Assad. Já os russos têm investido pesadamente na manutenção do regime de Assad, não apenas fornecendo material militar em grande escala ao governo, como também colocando no campo de batalha algumas de suas próprias tropas de combate, de acordo com relatos frequentes dos demais envolvidos na guerra.
Outra complexa relação que contamina os acontecimentos na Síria envolve a intensa movimentação do Irã, em busca de se tornar um protagonista político do mundo islâmico.  O governo de Teerã não apenas financia diretamente a sobrevivência de Assad, como também participa indiretamente de combates através da milícia libanesa Hezbollah, à qual direciona recursos há vários anos.
Apesar de todos esses países terem sofrido de alguma forma os efeitos prejudiciais da instabilidade política que tomou conta do Iraque depois de 2003, agora contribuem, com sua atuação na Síria, para reproduzir o mesmo cenário de caos nacional.

sábado, 19 de setembro de 2015

Síndicos politizados

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 13/09/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Dentro de menos de um ano, estará em andamento o processo eleitoral para a escolha dos governantes nos 5.570 municípios brasileiros. O papel administrativo dos prefeitos costuma ser colocado em primeiro plano, sendo esses muitas vezes descritos como “síndicos” de suas respectivas prefeituras. Ao mesmo tempo, existe a visão que destaca o papel crucial desempenhado pelo prefeito municipal nas eleições estaduais e nacionais no Brasil. Em cidades de todos os tamanhos, mas com maior ênfase nas de menor porte, o posicionamento do prefeito é um referencial decisivo para boa parte da população na hora de escolher governadores e presidentes.
Porém, a conjuntura política brasileira dos últimos anos guarda pouca semelhança com a normalidade da atual democracia brasileira, o que cria expectativas adicionais em relação ao pleito do ano que vem; afinal, em 2016 serão estabelecidas muitas das posições a partir das quais serão disputadas as eleições de 2018. Os principais partidos políticos brasileiros caminham para esse enfrentamento com objetivos bem distintos, integrados em suas estratégias de poder nacionais.
O PMDB, partido que mais vem ganhando poder a partir do enfraquecimento do governo petista, manifestou através de suas lideranças o interesse em expandir sua presença nas grandes cidades e capitais estaduais. Não que o partido se encontre em situação desvantajosa no cenário municipalista, muito pelo contrário: trata-se da legenda que mais comanda prefeituras no Brasil, com 1.019 eleitos em 2012. Porém, para que possa cogitar a empreitada presidencialista que acalenta para 2018, o PMDB não pode estar ausente das capitais, marcando presença nas principais vitrines administrativas e políticas do país. Mais do que votos, assim, o PMDB precisa acumular credibilidade administrativa para oferecer à população; hoje, essa tarefa é desempenhada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, de forma praticamente solitária.
O PT deve enfrentar o cenário eleitoral mais negativo de sua história em 2016: não só terá que comprovar eficiência administrativa na gerência das prefeituras, como também evitar os efeitos locais do desgaste profundo que atinge o nome do partido. A dúvida mais comum nas campanhas municipais se refere à contaminação dessas por temas de âmbito nacional; esse questionamento deve afligir aos estrategistas do PT, que terão sucesso se oferecerem mais “síndicos” e menos políticos ao eleitorado das cidades.
O PSDB, por sua vez, deve ter em Minas Gerais seu alvo principal se pretende obter ganho político a partir da derrocada do PT nacional. Não apenas Minas é o estado com o maior número de municípios do país, 853, como também foi onde os tucanos mais perderam espaço em 2014. Reconstruir a rede de prefeitos que dava suporte à plataforma tucana de governo em Minas vai exigir do PSDB um esforço colossal: sem o controle da burocracia estadual, a habilidade para se compor forças, conjugar interesses distintos e, sobretudo, negociar, será posta à prova em 2016.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Um futuro sem opinião

por Paulo Diniz
(publicado na edição de 06/09/2015 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)

Recentemente, um grupo de humor brasileiro que atua na internet produziu, com enorme sucesso, dois vídeos retratando os estereótipos de professores mais comuns no Ensino Médio; somadas, as visualizações de ambos se aproxima da casa dos dez milhões. O sucesso desse quadro ilustra o quão sintonizados estavam seus autores com a mentalidade dos jovens estudantes brasileiros, com o folclore escolar e, indiretamente, com o que acontece nas salas de aula: após apresentar o rigor sádico de uma professora da área de exatas e o desleixo de um docente desmotivado, surge a figura do “professor comunista”, desvelando a culpa eterna dos Estados Unidos e da grande mídia sobre todas as mazelas nacionais. Mesmo caricatos, os personagens compõem um retrato aproximado do dia a dia dos docentes no Brasil que, se por um lado são vítimas da falta de valorização pela sociedade, por outro são autores de certa cota de abusos.
Contra o típico “professor comunista”, o deputado federal Rogério Marinho, do PSDB potiguar, tomou atitude drástica: elaborou o projeto de lei 1.411, que criminaliza a discussão política em sala de aula. O absurdo da proposta começa no fato de que essa busca combater fogo com fogo: assim como o docente-militante, o PL 1.411 também sufoca a capacidade de crítica do aluno, exatamente na hora em que essa deveria ser estimulada. Cada um à sua forma, problema e solução se equivalem por impedir o aluno de pensar sobre a realidade que o cerca.
É importante perceber como surgiu essa armadilha extremista; mais um exemplo de como o Estado desempenha papel dominante sobre a sociedade brasileira. Afinal, incapazes de lidar com a discordância de ideias no campo interpessoal, apelamos ao Estado como regulador de nossas vidas. Segundo o sociólogo José Murilo de Carvalho, a forma como o Estado se fez presente na história brasileira foi, muito frequentemente, apenas como aparato burocrático dissociado de direitos civis ou políticos garantidos à população. Esse papel dominante e centralizador do Estado sobre a vida social brasileira fez surgir o conceito de “estadania”, no lugar da cidadania: a vida do brasileiro é, tradicionalmente, mais sofrida para quem não possui contato, pessoal e privilegiado, com algum integrante do corpo de servidores públicos.
No Uruguai, país com fortes laços históricos em comum com o Brasil, um dilema semelhante vem ocorrendo: os livros didáticos adotados por muitas escolas vêm sendo apontados como politicamente tendenciosos, o que despertou debate a respeito dos critérios existentes para a aprovação oficial desse material. Assim como no Brasil, não demorou a ganharem coro clamores pelo braço forte do Estado: proibindo, fiscalizando e, sobretudo, ocupando o espaço do debate e da construção da autonomia da juventude.
A situação é cruel por encerrar um círculo vicioso: formar gerações conscientes de seu papel e capazes de retirar do Estado o protagonismo sobre a vida social é algo que demanda, justamente, um ambiente escolar que construa autonomia.