(publicado na edição de 09/03/2014 de O Tempo - Belo Horizonte, Minas Gerais)
Dez anos separam as duas últimas ocasiões nas
quais o Congresso Nacional foi invadido, em eventos cheios de significados para
a democracia brasileira. Tanto em 2003 quanto em 2013, o desprezo geral pelas
maiores casas legislativas do Brasil desempenhou um papel crucial: no primeiro
caso, os invasores contavam receber o aplauso geral pela depredação do
Congresso; já no segundo, a multidão dançou junto às cúpulas do Congresso, em
um belo lembrete de que todo poder emana do povo.
À parte essa coincidência, há grandes diferenças entre
essas duas ocasiões, sobretudo no que se refere ao perfil da sociedade
brasileira. Em 2003, a invasão do Congresso foi realizada por um pequeno e
desconhecido movimento social, o que torna os interesses dessa ação
essencialmente privados: conquistar notoriedade junto à mídia ou pressionar os
parlamentares pela aprovação de medidas de seu interesse. A característica
individualista dessa ação é típica de contextos políticos nos quais faz falta o
“espírito cívico”, cenários estudados em profundidade cientista político Robert
Putnam.
Analisando o desempenho dos governos regionais
italianos por 20 anos, Putnam percebeu que os melhores resultados ocorreram não
devido à riqueza econômica de cada região, mas sim como consequência do grau de
envolvimento da população com questões coletivas. Sendo assim, quanto mais as
pessoas e os grupos sociais se voltam para problemas de grande escala, tratando-os
em igualdade com seus dilemas individuais, mais é possível que estabeleçam uma
relação produtiva com o governo instituído. Sociedades dotadas de um espírito
cívico ativo serão atendidas por uma máquina pública mais eficiente.
Já nas situações em que predomina o egoísmo
individual ou de pequenos grupos, o governo lida sozinho com as questões
coletivas, o que leva a resultados de má qualidade. Trata-se do fenômeno do
“familismo amoral”, no qual toda ação que gere ganhos pessoais ou para o núcleo
familiar é considerada válida por si só, mesmo que cause danos para a
coletividade. A política e os problemas públicos são vistos como
responsabilidade “dos outros”, de forma que a relação que se estabelece com o
Estado é sempre voltada para a satisfação de interesses pessoais, como ocorrido
na invasão do Congresso de 2003.
Por mais caótica que pareça ter sido, a tomada do
Congresso em 2013 está muito distante do cenário de 2003: no ano passado, houve
a motivação voltada para os problemas coletivos nacionais, e não a simples
busca por interesses particulares. Sem lideranças formais ou demandas
consolidadas, mas vinculados a problemas que afetam toda a população, os
manifestantes que subiram às lajes do Congresso Nacional demonstraram um lampejo
do comportamento que Putnam identificou como responsável pelas melhores
experiências de governo.
Resta saber se, ao longo do tempo, as preocupações
coletivistas seguirão ganhando a atenção geral como ocorreu em 2013, ou se
retornaremos ao conflito de interesses particulares, como no triste incidente
de 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário