terça-feira, 29 de agosto de 2023

À prova de argentinos

 por Paulo Ricardo Diniz Filho

(publicado na edição de 29 de agosto de 2023 de O Tempo, Belo Horizonte, Minas Gerais)


Impossível não falar de Javier Milei nas últimas semanas: o candidato a Presidente menos ortodoxo na história argentina despontou como favorito quando foi o mais votado das prévias eleitorais. Mais difícil é evitar repetir as obviedades que foram ditas a respeito de Milei: seu extremismo político, seu plano para implantar o dólar como moeda oficial da Argentina e até sua preferência pelo esoterismo.

Algo que ainda não foi repercutido no Brasil é que a plataforma econômica de Javier Milei fracassará, deixando a Argentina na maior crise econômica de todas. Esse prognóstico é feito a partir da longa entrevista dada pelo economista chefe da equipe de Milei, Emilio Ocampo, ao canal Todo Notícias.

Ocampo esclareceu vários aspectos operacionais do plano de dolarização da economia argentina, inclusive em relação à maneira como essa medida irá impactar a população de baixa renda. De toda forma, a proposta de Milei e Ocampo é factível, apesar de complexa. O grande problema reside na conceituação que sustenta todo o projeto.

A dolarização é, em si, apenas uma ferramenta para conter rapidamente a inflação: retira-se de circulação o peso argentino – desvalorizado, entre outros motivos, por circular em quantidade excessiva – e lança-se uma nova moeda, mais valorizada por existir em menor quantidade. O raciocínio é simplista – pois a inflação pode ter várias origens, para além do excesso de moeda em circulação – porém, não está incorreto; deve ser capaz de resolver parte do problema inflacionário. Restará sem solução, por exemplo, a inflação derivada das distorções dos sistemas produtivo e de distribuição de mercadorias, assim como a chamada “cultura inflacionária”, que se define pelo hábito de aplicar mecanismos de correção monetária a todos os preços.

Esse roteiro não é novidade: o Brasil já trocou sua moeda diversas vezes para conter a inflação, inclusive utilizando a URV como moeda de transição, para desacostumar a população da inflação “cultural”. Por quê, então, Milei e Ocampo não agem assim?

Porque uma nova moeda argentina também poderia ser manipulada, no futuro, para financiar os excessivos gastos do Estado. Com a adoção do dólar, apenas emitido pelo governo dos EUA, desapareceria a possibilidade de emissão de mais dinheiro para cobrir o rombo do orçamento argentino e, assim, a inflação não ressurgiria.

Em outras palavras, Milei e Ocampo propõem um plano econômico que seja “à prova de argentinos”: assumem a incapacidade de seu povo cuidar de si próprio, e pretendem amarrar as próprias mãos como medida de segurança. Esse fundamento surreal já garante o fracasso da plataforma econômica de Javier Milei – para não mencionar o plano de cortes dos gastos públicos, segundo o qual bastaria “eliminar regalias” dos políticos.

É impossível proteger uma sociedade das consequências das suas escolhas, como se a democracia pudesse funcionar como um videogame. Inclusive, caso elejam Javier Milei em outubro, não vai haver proteção aos argentinos contra a pior crise da história.

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